Quando adolescente e récem-adulto, pleno de hormônios, acreditava que no futuro o ambiente mais animado de minha casa seria meu quarto. Do alto dos meus confessos 51 anos (ai...dói dizer isto...), afirmo que minhas projeções, assim como a da maioria dos homens que conheço, transformou-se em uma outra realidade - o lugar mais animado de minha casa, desde muito, é minha cozinha. E tenho um estranho hábito que corrobora com esta situação - a primeira coisa que faço, quando vou cozinhar, é "ligar o som" - não consigo disassociar o ato de cozinhar do de ouvir música. Já citei este fato AQUI - na época, era apenas o laptop que continha receitas e as músicas. Mas a cozinha foi adquirindo novos aparelhos, panelas, travessas, formas, e um som novo também, para animar mais ainda este espaço - sempre acompanhado por Leopoldo, meu fiel escudeiro,
eternamente na expectativa de que algum pedaço de comida caia no chão. E música e comida andam paralelos, um interferindo no outro - e Leo sempre atento...
Pensei nisto enquanto ouvia DAVID BOWIE com God Only Knows, e esta melodia me fez parar tudo para usufruir melhor do excelente Meia Pipa, um vinho da Quinta da Bacalhoa, e a voz de Bowie foi a trilha perfeita para um caldo verde - onde a comida e o vinho lusitanos se encontraram com o sotaque britânico não consigo explicar, mas foi uma boa noitada.
A coreografia do video Closer, de NE-YO
seguida de Turn Up The Music de CHRIS BROWN, agitaram a cozinha. pois meu corpo não parava enquanto eu salteava numa wok camarões com vagens e temperos diversos, um prato rápido, bonito e pouco calórico, mas extremamente saboroso, e infinitamente mais elegante do que minha silhueta balançando sob o olhar crítico de Leopoldo.
Tom York , do Radiohead, gemia em RECKONER enquanto eu gemia de verdade pela dor da queimadura em meu braço direito, oriunda do forno muito quente que produziu um excelente frango com tahine - acompanhado de couve-flor igualmente assada com gergelim, e arroz basmati. O sabor do prato suplantou a dor, garanto.
Eleanor Rigby é uma de minhas canções preferidas, e a voz rascante de RAY CHARLES preencheu toda a cozinha, sala e - provavelmente - os apartamentos vizinhos, pois o som estava quase tão alto quanto o cozinheiro, que preparava sobrecoxas de frango com lentilhas, acompanhado por 1)rhum and coke e 2)duas ou três ou quatro Lighthouse Black
Beer..."All the lonely people / Where do they all belong..." A noite quase terminou com uma amputação da ponta do polegar direito, obra e graça do álcool e da faca nova - mais um pouco e teria feito frango ao molho pardo...
Uma excepcional cidra - Charlotte Corday, e sua rusticidade elegante, presente de uma amiga, casaram perfeitamente com tomates assados com sal grosso, azeite e tomilho, servidos com pão rústico. Isto mais a gravação de Nature Boy, GEORGE BENSON versão de 1977, levaram-me a tempos dos quais já não me lembrava.
De vez em quando o clima na cozinha acalma, e nestas horas o som puro de BRAD MEHLDAU busca neste espaço apenas coisas límpidas como as notas deste pianista. Nestas horas, um champagne rosé, ou um Courvoisier, ou algo ainda mais puro, transcendente, superior. Como uma simples taça de San Pellegrino.
(PS - clique nos links ou textos em cinza para ouvir do que estou falando...)